Laços que levantam suspeita
Insistência de magistrados em julgar réus com os quais têm
algum tipo de relação pode não ser ilegal, mas é certamente imoral
Gazeta do Povo
[19/12/2018] [00h01]
| Rosinei Coutinho/SCO/STF
Rosinei Coutinho/SCO/STF
Na última segunda-feira, dia 17, dois ministros do Tribunal
de Contas da União levaram ao limite a desfaçatez no julgamento de um
ex-diretor-geral e um ex-primeiro-secretário do Senado. Agaciel Maia, que hoje
é deputado distrital em Brasília, e Efraim Moraes, também ex-senador, eram
julgados pelo órgão pela contratação de uma empresa de informática a valores
muito acima do mercado entre 2005 e 2009, causando à casa legislativa um
prejuízo de R$ 13 milhões. Apesar da recomendação da área técnica do TCU pela condenação,
ambos acabaram absolvidos graças a uma mudança de posição dos ministros Aroldo
Cedraz e Raimundo Carreiro – este último, presidente do TCU.
Quando o julgamento começou, longínquos cinco anos atrás,
Cedraz e Carreiro se declararam impedidos – aquele, por ter sido companheiro de
partido de Moraes; este, por ter sido secretário-geral da mesa do Senado quando
Maia era o diretor-geral. Os demais ministros deram seus votos e construíram um
placar provisório de 4 a 3 pela condenação. Na retomada do julgamento, dias
atrás, Cedraz perguntou a quantas andava a votação e, ao saber que o resultado
era desfavorável aos acusados, resolveu se “desimpedir” e empatar o placar. Na
sequência, Carreiro fez o mesmo, livrando Maia e Moraes do ressarcimento do
prejuízo milionário e de uma possível inabilitação de oito anos para exercer
cargos de confiança. Outros ministros do TCU protestaram e a procuradora-geral
de Contas junto ao TCU prometeu recorrer.
O laço entre julgador e réu é suficiente para que cidadão
suspeite de favorecimento
O “desimpedimento” pode até ser inédito, mas não é de hoje
que julgamentos contam com a participação de quem deles deveria se ausentar –
se não por obrigação legal, pelo menos por obrigação moral. Hoje presidente do
Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli já julgou José Dirceu, seu ex-chefe na
Casa Civil, mais de uma vez. No mensalão, mesmo sendo derrotado, Toffoli ajudou
a construir o placar que garantiu a Dirceu a análise de embargos infringentes
que reduziram sua pena. Na Lava Jato, Toffoli chegou ao ponto de sacar da
cartola um habeas corpus “de ofício” que livrou Dirceu da cadeia, onde ele
cumpria pena depois de já ter sido condenado na segunda instância.
Outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, também não viu
problemas em conceder habeas corpus – em três ocasiões diferentes! – a Jacob
Barata Filho, empresário do setor de transporte coletivo, apesar do fato de o
ministro ter sido padrinho de casamento da filha de Barata. E os ministros do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Luciana Lóssio e Admar Gonzaga julgaram as
contas da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, que conseguiu a reeleição em 2014,
apesar de ambos terem atuado como advogados na campanha anterior de Dilma, em
2010.
Os artigos 252 a 256 do Código de Processo Penal e os
artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil tratam do impedimento ou
suspeição de magistrados. Algumas das situações previstas incluem o fato de o
juiz “ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou
colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado
no feito”; ou “se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles” [das
partes]; ou, ainda, “se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer
das partes”. É bem provável que, em pelo menos alguns dos casos que
mencionamos, efetivamente não se configurem as circunstâncias que ensejariam
formalmente o impedimento ou a suspeição. Mas a lei também dá ao magistrado a
possibilidade de se declarar impedido por questões de foro íntimo, não
necessariamente contempladas nos artigos do CPP ou do CPC.
E, ainda que a legalidade pura e simples não exija que
Cedraz, Carreiro, Toffoli, Mendes, Gonzaga ou Luciana Lóssio se abstivessem de
participar dos julgamentos, a moralidade o recomendaria fortemente. O tipo de
laço existente entre julgador e réu nesses casos, mesmo que indireto, é
suficiente para que cidadão suspeite – no sentido comum, não jurídico, da
palavra – de um favorecimento motivado por essa relação anterior, especialmente
quando se observa que todas as decisões ou votos beneficiaram os acusados.
Quando esse tipo de situação ocorre, as instituições sofrem
com um perigoso descrédito – seja o Tribunal de Contas da União, seja o Poder
Judiciário. Um desgaste que poderia muito bem ser evitado se os julgadores, em
vez de se ater a um legalismo extremo, contemplassem em termos mais amplos a
adequação de sua participação em determinados julgamentos. Nestes casos,
abster-se não é se omitir diante da missão que a sociedade espera de um juiz ou
ministro, mas contribuir para que as decisões emanadas estejam livres de
qualquer suspeita.
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