Na briga STF X Lava Jato, Toffoli tenta silenciar o procurador Dallagnol
Posted on setembro 23, 2018by
Celso Serra
Em
seu blog, Josias de Souza comenta que, em sua primeira entrevista como
presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli soou enfático:
”O STF sempre deu suporte à Lava Jato, vamos parar com essa lenda urbana, com
esse folclore”, declarou.
O procurador da República Deltan Dallagnol protocolou
na Corregedoria Nacional do Ministério Público um documento que contradiz
Toffoli. Ele relaciona dezenas de decisões anti-Lava Jato tomadas pela Segunda
Turma do Supremo. São deliberações reais, não fantasiosas ou folclóricas.
Dallagnol
enxerga na providência uma tentativa de censurá-lo. Sustenta em sua defesa que
não fez senão exercitar a liberdade de expressão. “Procuradores e promotores
não são meio-cidadãos”, escreveu. “Têm direito legítimo a realizar críticas,
mesmo ácidas e contundentes, contra decisões judiciais.”
É OBRIGAÇÃO –
O procurador avalia que é parte de sua obrigação funcional a “prestação de
contas de seu trabalho para a sociedade.” Isso inclui “avaliar criticamente o
significado de decisões judiciais.”
De
resto, o procurador teve a preocupação de demonstrar que não disse inverdades
na entrevista que aborreceu Toffoli. Daí ter empilhado as decisões prejudiciais
à Lava Jato. Fez mais: comparou o refresco servido pela Segunda Turma aos corruptos
com o tratamento draconiano dispensado a réus que cometeram crimes mais
brandos.
Quem
atravessa a peça do procurador do primeiro parágrafo ao ponto final emerge da
leitura com a impressão de que a “lenda urbana” de que falou Toffoli inclui um
conjunto de decisões desconexas que, reunidas num mesmo documento, emitem “uma
mensagem muito forte de leniência a favor da corrupção”.
SOLTURA DE DIRCEU –
Dallagnol citou o julgamento em que a Segunda Turma decidiu libertar José
Dirceu por 3 votos a 2. Reproduziu trechos dos votos divergentes de Edson
Fachin e Celso de Mello para demonstrar que havia sólidas razões para manter o
ex-chefão da Casa Civil de Lula atrás das grades. O procurador comparou a
decisão que beneficiou Dirceu a outras deliberações da mesma Turma. O resultado
do cotejo exala incoerência.
Por
exemplo: o ex-prefeito da cidade de Redenção do Gurgueia (PI), Delano Parente,
foi acusado dos mesmos crimes atribuídos a Dirceu: corrupção, lavagem de
dinheiro e organização criminosa. Mas teve o habeas corpus negado pela Segunda
Turma. Alegou-se que a prisão tinha sido baseada na prática habitual e
reiterada dos crimes. Exatamente o mesmo argumento usado para encarcerar o
ex-ministro petista. Delano desviara R$ 17 milhões. Dirceu, R$ 19 milhões,
noves fora o mensalão.
Há
coisa pior: preso há mais de dois anos, Thiago Maurício Sá Pereira, conhecido
como Thiago Poeta, teve um pedido de habeas corpus negado pela Segunda Turma em
março. Acusado de traficar drogas, foi preso com 162 gramas de cocaína e 10
gramas de maconha. Sua pena foi menor que a de Dirceu: 17 anos e 6 meses,
contra 30 anos. Mas os ministros não tiveram com o “Poeta” a complacência
dedicada a Dirceu.
RÉU PRIMÁRIO –
Não é só: réu primário, Alef Gustavo Silva Saraiva foi flagrado com menos de 150
gramas de cocaína e maconha. Depois de passar quase um ano na cadeia, pediu um
habeas corpus ao Supremo. Num julgamento ocorrido em dezembro de 2016, a prisão
foi mantida por 4 votos. Gilmar Mendes ausentou-se.
Ricardo
Lewandowski, adepto da política de celas abertas para réus graúdos, disse o
seguinte sobre o caso de Alef: “..Há farta jurisprudência desta Corte, em ambas
as Turmas, no sentido de que a gravidade in concreto do delito ante o modus
operandi empregado e a quantidade de droga apreendida – no caso, 130 invólucros
plásticos e 59 microtubos de cocaína, pesando um total de 87,90 gramas, e 3
invólucros plásticos de maconha, pesando um total de 44,10 gramas (apreendidas
juntamente com anotações referentes ao tráfico e certa quantia em dinheiro), permitem
concluir pela periculosidade social do paciente e pela consequente presença dos
requisitos autorizadores da prisão cautelar elencados no art. 312 do CPP, em
especial para garantia da ordem pública.”
COMPARAÇÃO –
E Dallagnol: “Diz-se que o tráfico de drogas gera mortes indiretas. Ora, a
corrupção também. A grande corrupção e o tráfico matam igualmente. Enquanto o
tráfico se associa à violência barulhenta, a corrupção mata pela falta de
remédios, por buracos em estradas e pela pobreza. Enquanto o tráfico ocupa
territórios, a corrupção ocupa o poder e captura o Estado, disfarçando-se de
uma capa de falsa legitimidade para lesar aqueles de quem deveria cuidar. A
mudança do cenário, dos morros para gabinetes requintados, não muda a realidade
sangrenta da corrupção. Gostaria de poder entender o tratamento diferenciado
que recebeu José Dirceu…”
O
coordenador da Lava Jato mencionou também os casos de encrencados no petrolão
que continuam atrás das grades. Receia que todos acabem ganhando o meio-fio:
“Na Lava Jato, os políticos Pedro Correa, André Vargas e Luiz Argolo estão
presos desde abril de 2015, assim como João Vaccari Neto. Marcelo Odebrecht,
desde junho de 2015. Os ex-diretores da Petrobras Renato Duque e Jorge Zelada,
desde março e julho de 2015. Todos há mais tempo do que José Dirceu.”
RÉUS HUMILDES –
As comparações tornam-se mais grotescas quando incluem réus humildes. Dallagnol
reproduziu artigo publicado há três meses pelo procurador regional da República
José Augusto Vagos em O Globo. O texto trata de exceções abertas no Supremo à
regras prevista na súmula 691, que veda a concessão do chamado “habeas corpus
canguru” (contra indeferimento de liminar na instância inferior). O tratamento
excepcional beneficia os graúdos da corrupção, nunca a arraia-miúda.
Eis
um trecho do texto do procurador: “…A Defensoria Pública de São Paulo impetrou
no STF o HC 157.704, para obter a liberdade de Valdemiro Firmino, acusado de
ter roubado R$ 140,00, em 2013. Alegava a Defensoria razões humanitárias:
Valdemiro é cego, HIV positivo e sofria de ataques de convulsão na unidade
prisional. O relator, ministro Gilmar Mendes, foi rigoroso. A liminar foi
indeferida no último dia 4: ‘Na hipótese dos autos, não vislumbro nenhuma
dessas situações ensejadoras do afastamento da incidência da Súmula 691 do
STF.’.”
O
texto prossegue: “Nesse dia, a mesma caneta conferiu maior sorte a quatro
acusados na Operação Câmbio, Desligo, que desvendou um esquema de lavagem de
dinheiro de US$ 1,6 bilhão. Outros 17 acusados em operações da Lava-Jato no Rio
de Janeiro mereceram a mesma deferência entre maio e junho deste ano. Ao
contrário do Valdemiro, todos esses réus foram beneficiados por liminares que
devolveram as suas liberdades sem que fosse preciso esperar o julgamento
definitivo dos HCs que impetraram no TRF-2 e no STJ. Alguns desses HCs sequer
chegaram a passar por essas instâncias.”
BERMUDA –
Noutra passagem, o procurador escreveu: “Em junho deste ano, o ministro Dias
Toffoli negou habeas corpus que objetivava reconhecer insignificância a um
morador de rua alcoólatra que furtou uma bermuda de R$ 10,00, que foi devolvida
à loja (HC 143921). […] Um mês antes, o mesmo ministro manteve na prisão um
homem acusado de ter furtado sacas de café, cujo valor era de R$ 81,00, as
quais foram mais tarde devolvidas. Do mesmo modo, o ministro Lewandowski, há 8
anos, negou habeas corpus para um acusado de furtar objetos que, no conjunto,
valiam R$ 202,00.”
O
conjunto da obra da Segunda Turma deixa a “lenda urbana” mencionada por Toffoli
aos jornalistas muito parecida com um conto da carochinha. A dúvida é se o
cardápio de decisões da Segundona compõe ou não uma conspiração contra o
esforço anticorrupção.
As evidências indicam que sim. Falta apenas um crachá.
As orelhas, o focinho e os dentes são de lobo. Mas Toffoli deseja que o
coordenador da força-tarefa de Curitiba diga em suas entrevistas que se trata
de uma inocente vovozinha disfarçada.
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