Inteligência eficaz não pressupõe ausência de confronto
Quinta, 06 Setembro 2018
Cel Carlos Frederico Gomes Cinelli
Operações Defesa Geral
“Os espiões são os personagens centrais de uma guerra. Sobre
eles repousa a capacidade de movimentação de um exército” (SUN TZU).
A literatura e o cinema ajudaram a cristalizar a percepção
de que a boa inteligência é aquela que se baseia essencialmente na espionagem.
Autores como Tom Clancy, Ian Fleming e Frederick Forsyth eternizaram
personagens dotados de múltiplas qualidades, requeridas tanto para trabalhos de
campo quanto para análise de informações.
No mundo real, sabemos que isso
raramente funciona. Bons analistas são dotados de atributos cognitivos que não
têm a ver com a arriscada tarefa de garimpar dados brutos cuja qualidade é
diretamente proporcional à periculosidade do ambiente em que estão diluídos. É
o trabalho de análise dos dados, por sua vez, que resulta no assessoramento
preciso ao tomador de decisão. Mas para que esse auxílio possa existir, é necessário
que os fragmentos de informação cheguem ao analista.
É curioso, portanto, que determinados “especialistas” em
segurança pública - profissão em franca e lucrativa expansão no Brasil -,
ao se expressarem sobre confrontos entre forças policiais e criminosos, repitam
mecanicamente, na ausência de argumentação mais concreta e pragmática, que o
problema da segurança pública no Rio de Janeiro é que “falta inteligência”.
Além de ser vocalizada de modo recorrente e quase inconsciente, essa assertiva
sugere também outra falácia: a de que a fricção ocorrida entre facínoras
armados de fuzil, entrincheirados em fortalezas naturais, e os agentes
policiais que tentam efetuar suas prisões, poderia ter sido evitada se
“houvesse mais inteligência”.
O emprego eficaz da inteligência não pressupõe ausência de
confronto, simplesmente porque o modo de obtenção da informação desejada é
dependente do comportamento do alvo que a retém, podendo ser ele (o alvo) uma
pessoa, uma emissão eletromagnética ou uma imagem de satélite, por exemplo. É
descabida a noção de que será sempre possível acessar um dado importante,
negado e protegido contra a difusão indiscriminada, de modo insidioso e
disfarçado, sem o ônus da superação de determinadas barreiras físicas.
Quando
os obstáculos interpostos entre o agente e o dado buscado se valem de meios
violentos, como nos casos da atividade de inteligência militar ou policial, não
raro haverá fricção com desdobramentos imprevisíveis. A própria doutrina de
operações militares contempla essa modalidade de obtenção de informações: o
chamado Reconhecimento em Força.
Novamente é interessante notar que, licenças poéticas e
exageros do cinema à parte, o próprio imaginário popular não só admite que um
agente de inteligência altamente hábil tenha “permissão para matar”, como
também enxerga, com naturalidade, o fato de que ele descarre sua arma cada vez
que a missão exige. Também é comum a confusão entre – inteligência e
investigação policial – como se fossem sinônimos. E como se o primeiro estivesse
restrito ao trabalho técnico de obtenção de provas para instrumentalizar um
inquérito, que é a essência do segundo.
A História Militar é pródiga em exemplos de como o emprego
prévio da inteligência foi decisivo para as fases posteriores das campanhas, quando
as operações de vulto são deflagradas. Embora a glamourização e a escassez de
exemplos conhecidos deem grande destaque à espionagem sutil como técnica de
inteligência, o fato é que dezenas de milhares de agentes - civis e militares -
tombaram em decorrência de confrontações armadas, quer na tentativa de
manutenção do disfarce, quer no patrulhamento ostensivo atrás das linhas
inimigas.
O próprio Direito Internacional dos Conflitos Armados, realístico por
natureza, admite a existência da atividade de espionagem como ação basilar para
o sucesso das operações militares, embora não estenda ao espião capturado em
ação a proteção do Estatuto do Combatente. Como se sabe, grande parte dos
países pune a espionagem de modo severo, em alguns casos com a pena capital.
A operação do Comando Conjunto da Intervenção Federal nos
Complexos do Alemão, Penha e Maré, no dia 20 de agosto, foi didática no sentido
de demonstrar dois aspectos. Primeiro, o emprego integrado de diferentes
abordagens da atividade de inteligência, que permitiu tanto efetuar prisões em
flagrante, sem nenhum disparo sequer, quanto mapear preliminarmente os
principais pontos de interesse no terreno. Segundo, o grau de irracionalidade
da criminalidade carioca que ultrapassa todos os limites do razoável: mesmo
cercados por 4.200 homens, 20 blindados e 3 aeronaves, os criminosos se
recusaram a aceitar a rendição oferecida, partindo para um confronto em meio à
população civil inocente.
O saldo indesejável de 8 óbitos - 5 bandidos e 3
militares do Exército - somente reforça o fato de que, não fosse a
sinergia obtida pelas inteligências militar e policial, certamente o desfecho
teria sido ainda mais doloroso e lamentável. Nota-se que houve também, de modo
concreto, a aplicação das três funções operacionais básicas: sensoriamento
(coleta e busca de dados), processamento (análise dos dados e tomada de
decisão) e atuação (uso legítimo da força).
Embora tenha caráter atual, seja abrangente e esteja
alinhada aos objetivos do Estado brasileiro, a Política Nacional de
Inteligência (Decreto nº 8.793, de 29 de junho de 2016) não visualiza a
possibilidade de que agentes possam, no decorrer da busca sigilosa de dados,
obter uma excludente de ilicitude na prática de eventuais atos que, mesmo
estando tipificados como crime, sejam indispensáveis à sustentação de seu
personagem na organização ou atividade que tenta escrutinar.
Obviamente isso
esbarra em questões sensíveis de limites éticos indispensáveis ao exercício do
poder no Estado Democrático de Direito, mas é uma possibilidade que poderia ser
trazida à discussão quando se fala em eficácia da atividade de inteligência com
fins de proteção da sociedade. Infelizmente, o que temos visto é uma discussão
ideologizada e a cegueira epistêmica de certos especialistas que disseminam
absurdos como: “o que falta à inteligência é mais transparência”.
Nada no juramento feito pelos policiais e militares os
obriga a sublimar seu instinto básico de autopreservação, sobretudo em face de
um fora da lei armado de fuzil que, negando-se à rendição oferecida, atira
impiedosamente contra eles. Isso nada tem a ver com inteligência. Trata-se de
uma resposta proporcional e legítima contra indivíduos cruéis que se
acostumaram a atacar policiais outrora enfraquecidos e compreensivelmente
desmotivados, devido ao abandono a que foram submetidos por décadas de
negligência e descaso.
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