A derrapagem do embaixador chinês lembrou o fiasco dos jornalistas em Buenos Aires
Augusto Nunes
No fim da tarde, os dois jornalistas da revista Veja desembarcaram em Buenos Aires com a imaginação bailando ao som de sensualíssimas letras de tango. Do aeroporto foram para o hotel no centro da cidade com a libido repartindo com Carlos Gardel a interpretação de Por una Cabeza. Apressaram o check-in e subiram para o apartamento prontos para a missão noturna definida já na decolagem no Brasil.
— Hoje vamos pegar mulher —
repetiu o repórter sem ter sequer desafivelado a mala.
— Vamos — endossou o fotógrafo
antes de terminar a contagem dos cabides enfileirados no canto do guarda-roupa.
— Começamos pela Corrientes —
alegrou-se o repórter, caprichando na pose de expert em noite
argentina.
— La calle que nunca
duerme… — animou-se o fotógrafo, tentando camuflar a escassa
intimidade com o sotaque portenho.
Saíram do hotel às 9 da noite.
Nas cinco horas seguintes, com sucessivas escalas em pizzarias, bares,
churrascarias e cabarés, exercitaram as pernas num buquê de ruas e avenidas —
Corrientes, Florida, Rivadavia, Maipu, Tucumán e outras relíquias do velho
centro. Poucas esquinas deixaram de ver passar a dupla movida a libido, mas a
noitada foi um fiasco: nenhum deles conseguiu companhia feminina. Os dois
estavam a 5 metros da entrada do hotel quando o repórter resolveu que ainda não
chegara a hora da rendição. Haveria uma tentativa derradeira.
— Você faz de conta que está
muito bravo, vai para o elevador sem cumprimentar ninguém e deixa o resto
comigo — disse ao fotógrafo.
Também com cara amarrada, o
pai da ideia rosnou um “buenas noches” ao cruzar a portaria guardada por
um homem de cabelos brancos, que pareceu intrigado com as carrancas da dupla
que, ao deixar o hotel horas antes, exibia o sorriso do mais otimista amante
latino. Os dois subiram pelo elevador em silêncio e mudos entraram no
apartamento. O repórter sentou-se numa das camas de solteiro, empunhou o
telefone, discou o número da portaria e fez a encomenda com voz de sargento que
perdeu a paciência:
— Yo quiero dos mujeres!
O homem de cabelos brancos não
entendeu direito que o queria exatamente aquele brasileiro de humor instável. E
pediu-lhe que repetisse a solicitação.
— Dos mujeres! —
subiu o tom o repórter. — Dos mujeres! Dos chicas! Dos muchachas!
E então desabou a réplica
tempestuosa. Muitos decibéis acima do necessário para que também o fotógrafo
ouvisse tudo, o porteiro quis saber se aquele estrangeiro insolente por acaso
achava que hotel era puteiro, perguntou se estavam confundindo a Argentina com
um imenso viveiro de messalinas, sugeriu que requisitasse mulheres aos
familiares no Brasil, sublinhando cada frase com insultos e palavrões. Grogue
com a bronca, o repórter esperou que o temporal amainasse para murmurar o
pedido alternativo:
— Entonces, yo quiero
dos jugos de naranja.
Pôs o telefone no gancho, doou
ao fotógrafo o segundo suco de laranja e foi tentar dormir.
•••
Lembrei-me do fiasco na
Argentina ao conhecer o desfecho da mais recente missão confiada pela ditadura
chinesa ao embaixador no Brasil, Yang Wanming. Por determinação de Xi Jinping,
gerente-geral da obscenidade comunista fundada em 1949, o impetuoso diplomata
abriu a semana propondo uma barganha inverossímil. Em troca da liberação dos
insumos necessários para a produção de vacinas contra a covid-19, retidos em
Pequim, o governo brasileiro deveria demitir o ministro das Relações
Exteriores, Ernesto Araújo. O presidente Jair Bolsonaro reagiu à exigência com
uma mensagem atulhada de elogios a Araújo. Desconcertado, Wanming miou: já que
a barganha ultrajante não colara, os chantagistas se dariam por satisfeitos com
uma nota do Planalto celebrando as boas relações entre os dois países.
Os jornalistas que queriam
mulheres conformaram-se com sucos de laranja. O embaixador que jurava não
admitir menos que a cabeça degolada de um ministro contentou-se com um curto
palavrório em burocratês castiço. Mas o confronto dos dois episódios escancara
um detalhe de dimensões siderais. Os protagonistas do fiasco em Buenos Aires
recordam aquela noitada em meio a risos e gargalhadas. Se os donos da China
suspeitarem que Wanming acha divertido o fracasso da missão que tentou cumprir
na capital do Brasil, vai aprender do jeito mais difícil que, como disse Mao a
seus discípulos, “a guerra é a diplomacia com mortos, e a diplomacia é a guerra
sem mortos”. Previsivelmente, as sombras que povoam o horizonte do embaixador
apressaram a entrada em ação dos sócios do Clube dos Amigos, Simpatizantes e
Adoradores da República Popular da China, o CASAREPOCHIN.
(República Popular da China:
eis aí um codinome e tanto para o país asiático cujos governantes revogaram há
mais de 70 anos todos os valores republicanos e continuam controlando do parto
à morte o que dizem, fazem ou pensam os cidadãos comuns. Só tem direito à
existência o partido comunista. Não há eleições: a cúpula decide quem vai
mandar em quem e quem vai governar o quê. Os que ousam discordar são presos,
mortos ou simplesmente desaparecem. Os meios de comunicação são estreitamente
vigiados por censores que não se contentam com a ausência de críticas: todo
jornalista deve também louvar a clarividência dos condutores da nação. Nada
disso preocupa os sócios do clube, todos preocupados em tempo integral com a
preservação da democracia ameaçada por Bolsonaro. Não há limites para o cinismo
no mundo dos libertários de picadeiro.)
O deputado Rodrigo Maia, por
exemplo, resolveu despedir-se da presidência da Câmara fantasiado de presidente
da República. Depois de visitar o embaixador para uma conversa reservada,
culpou o governo brasileiro pela criminosa retenção de vacinas e insumos.
Durante uma entrevista coletiva em São Paulo, o governador João Doria sacou do
coldre o tresoitão retórico para proibir a freguesia de criticar os negociantes
malandros. “Tratem bem a China!”, advertiu. “Respeitem a China! Se necessário,
eu iria à China para buscar um acordo, sim!”. Que acordo?, quer saber a
imensidão de brasileiros crentes de que está tudo acertado desde o dia em que Doria
fechou contrato para a aquisição de milhões de doses de CoronaVac. Já que o
governador exige respeito também a milenares tradições chinesas, que tal
aproveitar o possível regresso a Pequim para encarar publicamente uma sopa de
morcego?
No calendário chinês, acabou
em 31 de dezembro de 2020 o Ano do Rato. O balanço da semana sugere que, no
Brasil, o Ano do Rato chegou ao fim de janeiro sem prazo para terminar.
Título e Texto: Augusto Nunes, revista Oeste, 22-1-2021
https://www.caoquefuma.com/2021/01/duas-mulheres-ou-dois-sucos-de-laranja.html#more
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