O diretor de redação da Crusoé, Rodrigo Rangel, publicou um editorial hoje, do qual reproduzimos a íntegra
Em um dia qualquer do século passado, Louis Brandeis, o
mítico juiz da Suprema Corte americana, cunhou uma frase lapidar que ganharia
para sempre seu lugar na história. “A luz do Sol é o melhor detergente”,
elaborou Brandeis, partindo de um raciocínio simples, mas fundamental para
iluminar tempos sombrios como os que agora vivemos.
Crusoé foi lançada há menos de um ano. Ao longo de sua
existência, conseguiu amealhar um número expressivo de leitores. Nesta
segunda-feira, 15, a redação da revista viveu seu momento mais difícil. Uma
funcionária do Supremo Tribunal Federal bateu à porta para entregar três folhas
de papel que, em resumo, mandavam retirar do ar, imediatamente, a reportagem de
capa da mais recente edição.
A capa em questão estampava o rosto do presidente da corte,
Dias Toffoli. O texto revelava o teor de um documento em que Marcelo Odebrecht,
empreiteiro-delator da Lava Jato, contava tratar-se de Dias Toffoli um
personagem que, em mensagem eletrônica enviada por ele, era chamado de “amigo
do amigo de meu pai”.
A reportagem foi elaborada com cuidado. Em nenhum momento
Crusoé fez ilações ou atribuiu ao ministro qualquer tipo de relacionamento
escuso com a Odebrecht. Limitou-se a informar o conteúdo do e-mail e, como
mandam as normas do jornalismo, contextualizou a história, explicando quem era
quem e informando o papel de cada um quando a tal mensagem foi enviada. É
preciso, sempre, situar o leitor.
O mais importante, do ponto de vista da notícia, era o que
constava do documento, que acabara de ser apensado aos autos de um dos muitos
inquéritos da Operação Lava Jato. Lá pelas tantas, o texto informava que, por
mencionar Dias Toffoli, o ofício de Marcelo Odebrecht, entregue aos
investigadores por um de seus advogados, havia sido remetido (frise-se,
remetido) à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, responsável por
investigar quem tem foro privilegiado.
A procuradora-geral, no dia seguinte à publicação, divulgou
nota negando ter recebido (frise-se, recebido) cópia do documento de Odebrecht.
Era de se imaginar que o papel talvez ainda não tivesse chegado ao gabinete de
Dodge. Poderia estar transitando entre Curitiba e Brasília. Mas, como publicou
Crusoé, havia sido enviado à procuradora – isso, havia.
Eis que foi justamente à nota de Raquel Dodge que o ministro
Alexandre de Moraes, um dos onze integrantes do Supremo, recorreu para censurar
a revista, alegando tratar-se de fake news a reportagem publicada. Raciocínio
tortuoso. Dodge não ter recebido o documento, para ele, era motivo suficiente
para colocar em xeque a integridade do texto, que em momento algum dizia que o
papel havia chegado às mãos da procuradora.
Na decisão, aliás, havia zero palavra sobre a afirmação de
Marcelo Odebrecht acerca de Dias Toffoli. Esse era um não-assunto na ordem de
censura. A questão central era a nota de Dodge. O esforço para descredibilizar
a reportagem, ainda que baseado em uma premissa artificial, estava patente.
Relator no Supremo de um inquérito sigiloso aberto pelo
próprio Dias Toffoli para investigar agressões a integrantes da corte, Moraes
agiu a partir de uma provocação do próprio presidente. Horas após a publicação
da reportagem de Crusoé, Toffoli lhe enviara, do exterior, uma mensagem pedindo
a “devida apuração das mentiras recém divulgadas por pessoas e sites ignóbeis
que querem atingir as instituições brasileiras”.
Logo se descobriria, ao menos em parte, a razão do
misterioso inquérito instaurado em março, e que tanto chamou atenção por seu
caráter atípico: uma investigação aberta de ofício pelo presidente do tribunal,
que escolheu Alexandre de Moraes a dedo como relator, sem passar pelo sistema
de sorteio comum aos demais procedimentos, e sem o necessário acompanhamento do
Ministério Público.
A censura determinada por Moraes, se não disse tudo sobre o
inquérito, mostrou que um de seus propósitos é intimidar – ou, ao menos, tentar
intimidar — jornalistas que fazem seu trabalho. Crusoé foi censurada a partir
de um salto interpretativo, uma pirueta. Como não havia o que questionar sobre
a questão central, optou-se por criar um incidente lateral, motivado pela nota
de Dodge, que nem sequer condiz com o que consta do texto publicado.
Não fosse suficiente a ordem para retirar a reportagem do ar
imediatamente, o que foi feito, cerca de sete horas depois um outro oficial de
Justiça chegava à redação, agora para entregar uma intimação em que o gabinete
de Alexandre Moraes comunicava que a revista será multada por descumprir sua
decisão. O despacho de seis linhas não explicava quais bases serviram ao
entendimento do ministro de que sua ordem fora desrespeitada.
Como o tal inquérito corre sob sigilo, ao menos por ora é
impossível saber o que Alexandre de Moraes viu para concluir que houve
descumprimento da ordem de censura. Significa dizer que estamos expostos a
novas ordens, a qualquer momento – e, de novo, sem mais explicações.
Sim, estamos no escuro. Nunca a luz do Sol, aquela a que se
referia Brandeis, foi tão necessária. De tudo, uma coisa é certa: a jovem e
corajosa redação de Crusoé seguirá fazendo seu trabalho como deve ser feito.
Sem se curvar, sem temer as arbitrariedades, sempre em busca de luz para
iluminar as trevas.
Rodrigo Rangel
Diretor de redação
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