𝐀𝐍𝐓𝐈𝐏𝐎𝐏𝐔𝐋𝐈𝐒𝐌𝐎 𝐏𝐑𝐎𝐆𝐑𝐄𝐒𝐒𝐈𝐒𝐓𝐀 - 𝐕𝐄𝐒𝐓Í𝐁𝐔𝐋𝐎 𝐃𝐎 Ó𝐃𝐈𝐎

Por Gustavo Maultasch de Oliveira

Se você age com altruísmo para ajudar um adulto com plena capacidade, você não pode esperar que esse adulto, como principal interessado, aceite todas as suas sugestões sem questionar; a vida é dele afinal, e sua generosidade não está - ou não deveria estar - predicada em alguma expectativa quanto a arbitrar a vida alheia.

Se é assim, por que a nossa elite progressista altruísta iluminista anti-obscurantista do bem topzeira, que tanto diz agir em nome do povo e da justiça social, sente-se traída por esse mesmo povo quando ele decide votar em alguém sem o selo Progressista D.O.C.?

Repare: não é só um sentimento de reação a ingratidão, que de todo modo seria injustificado, mas poderia ser sentido com sinceridade. Se fosse só sentimento de ingratidão, o progressismo estaria em estado menos sanguíneo: fariam reclamações, um ou outro discurso, e bola para frente, o progressismo estaria na rua se reconstruindo. Ingratidão seria só um app que travou, logo destravado e esquecido; mas o que estamos vendo é mais visceral, um bug no chip, um sistema todo de pensamento que não consegue se recompor e reiniciar.

Isso fica claro quando vemos a reação dos progressistas em relação ao povo; não é só uma frustração, decepção ou melancolia; tem isso também, mas parece que todo progressista hoje sente a necessidade diária de pisar no povo, de mostrar para toda a população como ele é mais virtuoso que todos os brasileiros que insistem "no lado errado da história". É  uma reação cheia de desprezo condescendente, de raiva narcísica, de bronca moralista. Muito mais que ingratidão, é uma vingança, um revide, uma fúria em reação a uma humilhação narcísica causada por Traição. Mas por que tudo isso? Como pode haver "traição" entre adultos que não se prometeram nada? Em que circunstâncias um movimento político pode se sentir "traído" pelo povo?

O progressismo define-se, sobretudo, por uma crença na direcionalidade, no fim definido, na direção certa da história (é o historicismo de Popper, o gnosticismo de Voegelin, a Grande Marcha de Kundera etc). 

E - vejam a coincidência - acreditam que os seus quadros (jornalistas, acadêmicos, juízes, comentaristas, enfim, toda a tecnocracia progressista) são os únicos capacitados para interpretar, a cada conjuntura, o que a direção "certa" da história significa e exige que façamos. A democracia para os progressistas não é um arranjo institucional com disputas retóricas para a transição pacífica de poder, como eu acredito; ou um jogo deliberativo em que, a qualquer momento, qualquer lado pode vencer, como muitos outros acreditam; para o progressista, a democracia é teleológica (finalística), ela tem uma direção certa (a direção do progressismo). E quando sai da direção certa, aí já não é mais democracia.

O povo é importante para legitimar o negócio, claro; afinal, se tirar o povo dessa descrição aí acima, o autoritarismo fica escancarado demais até para eles; definimos o sentido da história sozinhos? Aí já é demais.

É preciso então repisar o "engajar", "defender as minorias", "direitos humanos", "participação popular" etc., para que a coisa tenha uma aparência de legitimidade; afinal, ainda não se inventou nenhuma narrativa melhor para a legitimidade do sistema democrático que a soberania popular (ainda que, claro, com alguns limites institucionais impostos mesmo à vontade da maioria).

Mas vejam que, quando as opiniões do povo desviam-se dessa direção "certa", a elite progressista o despreza; despreza o seu obscurantismo, seu machismo, seu reacionarismo, sua ignorância em cair no "neopopulismo", e assim por diante. A narrativa muda rapidinho, desta vez para dizer que a soberania popular não serve; chamem os juízes! Chamem os cientistas! Chamem os "editores da sociedade"! Chamem os jornalistas! União contra o fascismo, contra o retrocesso!

Mas peraí, qual retrocesso? O retrocesso de o povo votar em alguém que não combina com a visão progressista teleológica (finalística) da história e da democracia?

E daí fica evidente por que esse apelo todo à autoridade, à ciência, à mídia tradicional, contra o "ódio", contra as "fake news", e assim por diante: se o povo não vai jogar o nosso jogo, então é tecnocracia na cabeça deles; dane-se a democracia, até porque ela só é democrática quando está na direção certa (que é a direção que a gente quer).

É nesse paradoxo (entre pensar que age em nome do povo, mas instrumentalizá-lo para os seus próprios fins) que nasce o sentimento de traição: eu fiz meus planos usando você, investi minha identidade nesse pseudo-amor que finjo que tenho por você, e ainda por cima estava dando tudo certo, era só você continuar no que estava fazendo (quer dizer, eu tinha razões para as minhas expectativas quanto a você), eu já estava correndo para a vitória, e você me trai? Como você pôde ser tão estúpido, tão obscurantista, tão gado, tão bolsominion!

Não é uma traição tradicional em meio a uma relação bilateral, em que ambos têm expectativas quanto ao outro; é, na verdade, uma traição entre o progressista e o povo imaginário submisso e tutelado que o progressista construiu na sua própria cabeça; a fúria narcísica, esse vestíbulo do ódio, é direcionado ao povo real, mas quem traiu o progressista foi ele mesmo, com seus planos e suas idealizações equivocadas; e é por isso que, além do sentimento de traição, o progressista sente-se também humilhado e desesperado, como o sujeito que se pensava o virtuose e acabou descobrindo, de uma hora para outra, que perdeu tudo o que tinha por suas próprias más decisões; e que, claro, o tempo não volta.

PS: essa espécie de "auto-traição" é um dos sentimentos que mais me fascinam na nossa gramática humana. Um bom exemplo disso está numa cena de Trapaceiros (Woody Allen) em que o David (Hugh Grant) briga com a Frenchy (Tracey Ullman) por ela ter sido tão "idiota" em perder os seus investimentos (que ele, claro, queria para si). Quem tiver outras referências, aceito. :)


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