Comando Vermelho se estabelece na Bahia a partir de aliança com o CP


Territórios antes dominados pelo CP passam a ser área do CV, inclusive o complexo do Nordeste de Amaralina

Bruno Wendelbruno.cardoso@redebahia.com.br

Em um muro no bairro de Santa Cruz, duas siglas juntas representam uma aliança forte e perigosa para a segurança pública na Bahia. Pichadas na cor vermelha, as iniciais “CP” e “CV” mostram o que antes só se ouvia nos bastidores da polícia: a facção Comando da Paz, criada em 2007 no Presídio Salvador, acaba de se tornar uma célula da segunda maior organização criminosa do país, o Comando Vermelho (CV), que surgiu na década de 70 num presídio do Rio de Janeiro. Ou seja, o CV não mais só fornece armas e drogas para o estado, ele  se estabeleceu em bairros de Salvador. 

A partir de agora, os territórios antes dominados pelo CP passam a ser área do CV, inclusive o complexo do Nordeste de Amaralina (Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas e Chapada do Rio Vermelho). É no complexo, mais precisamente no Beco da Cultura, em Santa Cruz, que o CORREIO encontrou as duas siglas num muro. Para além da demonstração da aliança, as iniciais são uma afronta à Secretaria de Segurança Pública (SSP).  

As pichações foram feitas em frente à Base Comunitária e a menos de 500 metros da 40ª Companhia Independente da Polícia Militar (Nordeste de Amaralina). Segundo mensagens que circulam no WhatsApp, as pichações seriam uma forma de convocar os integrantes da facção para vingar a morte do traficante Elias Maluco, uma das maiores lideranças do CV, que foi encontrado morto na Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná. Preso desde 2002, Elias foi condenado a 28 anos e seis meses de prisão pela autoria do assassinato do jornalista Tim Lopes. 

Na Bahia, uma mensagem de luto à morte de Elias circula no aplicativo. O conteúdo seria do CV e lista as regiões, bairros e localidades que agora são de domínio da facção carioca e ainda convoca a tropa para atacar os “órgãos de segurança pública do Estado da Bahia”:

“Nós, membros do Comando Vermelho do Estado da Bahia, iremos fazer uma homenagem ao general Elias Maluco, cada favela do CV homenageará nosso irmão com  uma de queima de fogos e depois promovemos ataques aos órgãos de segurança pública do estado. Estamos cheios de ódio”. 


Mensagem que seria do CV em aplicativo em razão do luto à morte de Elias Maluco (Reprodução)

“A gente já vai dar uma reposta a isso”, disse  o comandante de Operações da Polícia Militar, coronel Humberto Sturaro. Sobre a aliança entre o CP e o CV, ele orientou o CORREIO a procurar o Departamento de Comunicação Social (DCS) da instituição “para alinhar o pensamento da PM”.  

Já o DCS direcionou a demanda à Polícia Civil, que, por meio do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado, informou que “apura a veracidade das informações acerca da atuação de organizações criminosas na Bahia. Ressalta que trabalha em conjunto com outras instituições da Segurança Pública, priorizando as ações de inteligência”.

Complexo
Os faccionados do CV têm, por hábito, assediar criminosos locais apresentando supostos “benefícios”, como o auxílio de advogados e acesso mais barato a entorpecentes. Foi, ao que tudo indica, o que aconteceu com o CP, agora uma célula da segunda maior organização criminosa do país na Bahia. Além disso, o CP contará com suporte de traficantes cariocas para os ataques em massa a rivais da Ordem e Progresso (OP) e do Bonde do Maluco (BDM).  

De acordo com a apuração do CORREIO, traficantes do CV chegaram à Bahia há  três meses. “Tomamos conhecimento disso, mas ainda não temos a dimensão do problema. É fato que os cariocas estão na área”, disse um investigador da 28ª Delegacia (Nordeste de Amaralina). 

Na manhã desta terça-feira, o CORREIO esteve no complexo e encontrou as iniciais da facção carioca em muros de casas e estabelecimentos comerciais, barracas, postes de iluminação pública e escadarias. No final de linha do Vale das Pedrinhas, um grupo de idosos bebia num boteco ao lado de uma das inscrições. “A gente dormiu e quando acordou já estava tudo aí”, comentou um. “São coisas deles lá, mas ninguém sabe quem”, emendou outro, antes da turma dispersar. 


Um menino que estava próximo, vendendo doces numa banca, foi indagado pelo CORREIO se sabia o significado das letras “CV” acompanhadas de “Tudo 2” deixadas numa escadaria. “Eu não sei de nada e seu eu fosse vocês a ira embora daqui”, respondeu antes de dar as costas, o garoto que aparentava seus 10 anos. Ainda no final de linha, o CORREIO foi ao encontrou de três rapazes que estavam numa oficina. “Olhe, aqui a gente não pode e nem deve falar nada, porque só o fato de vocês estarem aqui, eles (traficantes) já estão sabendo por causa dos ‘olheiros’. Mas é fato que essas pichações são recentes e estão espalhadas por vários pontos do Nordeste. Se vocês forem aqui perto, no Serra Verde, encontraram em grande quantidade, mas não aconselho vocês entrarem nem essa hora (09:30). Lá é perigoso até pra quem é daqui”, disse um dos rapazes. 

O CORREIO chegou a ir até o início da localidade de Serra Verde, a Rua Antenor Costa Nuno, que liga o Vale das Pedrinhas ao Nordeste, mas, por uma questão se segurança, não seguiu em frente, pois a equipe passava a ser monitorada por olheiros espalhados nos becos, sentados na porta de estabelecimento comerciais e circulando de bicicletas. Fotos da equipe foram tiradas de celulares.

No Beco da Culta, as duas siglas, CV e CP, estavam em um muro defronte à Base Comunitária, há poucos metros da 40ª CIMP e também perto da Rua Pará, a que dá acesso a localidade do Boqueirão, o “QG” do CP, agora CV, onde o acesso da polícia só é possível com um grande efetivo – isso inclui unidades especializadas monitoradas por helicóptero. Moradores e comerciantes não quiseram falar sobre o assunto, mas na apuração do CORREIO é que na Rua Emídio Pio e a Rua São Policarpo, ambas no Boqueirão, constam em vários pontos as inscrições do Comando Vermelho. 

Jardim Santo Inácio
A chegada do CV ao bairro do Jardim Santo Inácio não foi diferente. As iniciais da segunda maior facção do país foi foram deixadas em vários pontos da Rua Direta de Santo Inácio, a principal do bairro. “Tem dois meses que tudo amanheceu assim”, disse uma proprietária de uma mercearia apontando para uma as letras CV pichadas num contêiner de lixo. “Eu não sei direito o que essas letras significam, mas dizem que é do pessoal do Rio de Janeiro”, emendou. 

A dona de uma lanchonete falou do temor. “O nosso medo são os confrontos. Nessa troca de tiros entre eles, algum inocente pode ser atingido. Aqui tem um comércio muito forte, tem muitas escolas, então a movimentação de gente aqui é intensa e uma guerra deles pode deixar muita gente que não tem nada a ver com isso ferida ou morta”, disse ela. 


No muro de uma casa de material de construção e o no muro de um condomínio residencial, a sigla “CV” e o “Tudo 2” foram encobertos por tintas verde e preta. “Isso foi a Polícia Civil. Eles estiveram aqui e cobriram tudo, enquanto a Polícia Militar só assistia. Mas no dia seguinte, outras pichações foram feitas pelo grupo”, contou a comerciante.  
Ainda de acordo com a apuração do CORREIO, foram encontradas as siglas “CV” nos bairros de Engenho Velho da Federação, Sussuarana, Engomadeira e Alto da Terezinha. 

Aliança
De acordo com fontes da Secretaria de Segurança Pública (SSP), a aliança entre a CP e o CV não surgiu somente do interesse da organização carioca. Os traficantes Joseval Bandeira, o Val Bandeira, e Leandro Marques Cerqueira, o Leandro P, queriam há bastante tempo eliminar o líder da facção Ordem e Progresso (OP), Thiago Adílio dos Santos, o Coruja. Apesar de terem o CV como fornecedor de armas e drogas, a CP e a OP são rivais – a OP é uma dissidência da CP e tem o controle do tráfico na Liberdade, Iapi, Cidade Nova, Santa Mônica e Sieiro. Todos esses bairros já foram um dia as principais áreas atuação do CP fora do complexo do Nordeste de Amaralina, quando ainda o seu principal fundador, o traficante Éberson Souza Santos, o Pitty, estava vivo – ele morreu em 2007 num confronto com polícia. 

Ainda de acordo com as fontes da SSP, após terem sido procurados pelo CV no início deste ano em Salvador, a cúpula do CP foi ao Rio de Janeiro e apresentou a seguinte ponderação: para ter a união, seria necessário a execução de Coruja e assim iniciar o processo de retomada dos territórios antes pertencentes à CP, para então ganhar força com a maior facção do estado, o Bando do Maluco (BDM), presente em todo o território baiano.  

Coruja
No mês de agostos deste ano circulou nas redes sociais fotos e vídeos de um homem sendo sequestrado e posteriormente assassinado no Rio de Janeiro. O conteúdo compartilhado dizia que a vítima era o Coruja, que teria sido pego por homens armados na comunidade de Jardim Caiçara, controlada pela CV, na cidade carioca de Cabo Frio. Em fevereiro do ano passado, Coruja estava nessa mesma comunidade quando preso pela Polícia Federal


Coruja foi preso na comunidade de Jardim Caiçara, controlada pelo CV  em Cabo Frio  RJ)  (Foto: Reprodução)

Paredões
A chegada do CV à Bahia foi logo após o início da pandemia do novo coronavírus no estado, em março. Como as festas ainda são proibidas devido às medidas restritivas da Prefeitura de Salvador, os traficantes cariocas começaram a liberar dinheiro para a realização dos paredões. “É a forma que encontram para escoar a droga. Nunca tivemos tantos casos de paredões aqui e a grande maioria são nas áreas conhecidas de domínio do CP, como o complexo do Nordeste de Amaralina”, contou um policial militar que atua na Operação Sílere, trabalho conjunto das Secretarias da Segurança Pública (Estado) e Municipal de Ordem Pública (Semop), para combater poluição sonora e também reduzir crimes contra a vida e patrimônio. 

As denúncias na Semop tiveram um aumento de 70% “ De janeiro deste ano até de março, foram pouco mais de 3 mil denúncias. De lá até o final de agosto, foram 49 mil ligações, principalmente nos meses de julho e agosto. As denúncias relatavam que as festas de paredão eram bancadas por traficantes ”, relatou ao CORREIO um agente da Secretaria de Semop. 

Bastidores 
A instalação do CV no estado é vista com preocupação e tem sido o assunto nos bastidores da pasta. O CORREIO conversou com titulares de delegacias que atendem alguns bairros que já são controlados pela facção carioca. Os nomes foram mantidos no sigilo porque, segundo os próprios delegados, a SSP proíbe que eles falem com a imprensa sobre o assunto. “Estou ciente, mas isso é um assunto espinhoso, ao qual não estamos autorizados a falar. No entanto, é inegável que isso é preocupante porque o CV é um grupo muito maior, armas mis potentes e age no Brasil todo e vai dar muito trabalho à polícia daqui”, disse o delegado.

Uma delegada teme que a Bahia seguia o exemplo de outros estados onde a presença do CV aumentou o conflito e consequente o número de mortes. “É uma organização perigosíssima e forte, que tem muito dinheiro. Antes da aliança, a CP brigava para se manter em seus territórios. Já o CV vem brigando para se expandir ainda mais no país, com sua inteligência e poder bélico. Vimos recentemente a situação de estados do Nordeste e Norte em que as facções locais se aliaram ao CV. Houve um aumento absurdo de mortes por conquista de território, dentro e fora dos presídios”, declarou. 

Especialista
A aliança entre o CP e o CV deve aumentar os índices de criminalidade do estado, segundo o especialista em segurança pública, o coronel Antônio Jorge do coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio Fib da Bahia. “Uma aliança desse tipo impactante na segurança pública por uma razão muito simples: isso significa que haverá uma guerra por ocupação de outros territórios ligados a outras facções, porque uma aliança dessa não correria do nada. É uma expansão da ‘marca’ e como nós sabemos, o Comando Vermelho é uma organização violenta, os modos de atuação se afirmam pelo terror, querer intimidar o ocupar o espaço do concorrente através do terror”, explicou.

Com a chegada do CV à Bahia, Antônio Jorge pontou um outro problema: os milicianos – que formam uma organização criminosa composta por policiais, bombeiros, guardas municipais, vigilantes, agentes penitenciários e militares, fora de serviço ou na ativa. “O Comando Vermelho já atua nos presídios há muito tempo e agora vem agindo nas ruas. É uma guerra que está ligada ao narcotráfico. O que está por trás de tudo isso é o tráfico de drogas. Nisso vai entrar um outro problema, as milícias, uma possibilidade real de começar a acontecer por aqui. Porque nessa briga entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC), abre o espaço para o que aconteceu no Rio de Janeiro, que as milícias foram consideras por muito tempo forças amigas e começaram a ocupar terrenos, expulsavam os traficantes e assumiam as mesmas coisas que os traficantes faziam, como serviço de gás, construções irregulares”, disse o especialista. 

Comando Vermelho
O Comando Vermelho Rogério Lemgruber, mais conhecido como Comando Vermelho e pelas siglas CV e CVRL, é uma das maiores organizações criminosas do Brasil. Foi criada em 1979 no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro.

Entre os membros da facção, que se tornaram notórios depois de suas prisões, estão o líder Fernandinho Beira-Mar, Marcinho VP, Mineiro da Cidade Alta, Elias Maluco e Fabiano Atanazio (FB). O CV já possui ramificações em outros estados brasileiros como Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Espírito Santo, Acre, Pará, Maranhão, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Amazonas e algumas partes de Minas Gerais, Piauí, Paraíba, Pernambuco e da Bahia. Nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rondônia, Mato Grosso, Acre, Ceará e Tocantins o CV é maioria no sistema penitenciário.

A facção descende da Falange Vermelha foi criada por Rogério Lemgruber ainda na década de 1970. Uma das primeiras medidas do Comando Vermelho foi a instituição do "caixa comum" da organização criminosa, alimentado pelos proventos arrecadados pelas atividades criminosas isoladas, daqueles que estavam em liberdade, o dízimo. O dinheiro assim arrecadado serviria não só para financiar novas tentativas de fuga, mas igualmente para amenizar as duras condições de vida dos presos, reforçando a autoridade e respeito do Comando Vermelho no seio da massa carcerária.

No início dos anos 1980, os primeiros presos foragidos da Ilha Grande começaram a pôr em prática todos os ensinamentos que haviam adquirido ao longo dos anos de convivência com os presos políticos, organizando e praticando numerosos assaltos a instituições bancárias, algumas empresas e joalherias.

Ainda no início da década de 1990, a facção influenciaria a criação do Primeiro Comando da Capital em São Paulo. Dela surge ainda uma espécie de dissidência, posteriormente reincorporada, o Comando Vermelho Jovem.

Na década de 2000 diversas favelas controladas pela facção passaram a ser ocupadas por milícias e por Unidades de Polícia Pacificadora. Em 2016 as facções Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital se romperam por disputa de território nas fronteiras do Brasil com Paraguai, Bolívia e Colômbia, que ocasionou numa rebelião nos presídios em Rondônia e Roraima. CV e PCC eram aliadas há quase duas décadas.





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