A polêmica dos “estamentos mais inferiores”
Considerações sobre os “estamentos mais inferiores” <<<<
Texto recebido de Colaborador *
O presente artigo jurídico foi escrito utilizando as prerrogativas de advogado; e teve como assunto o pronunciamento do Ilmo°. Sr. Porta-voz da Presidência da República, que ocorreu no primeiro semestre deste ano e que pode ser encontrado em reportagem dessa revista (1) e também em vídeos na internet (2).
Durante entrevista o porta voz ao responder a pergunta de uma jornalista disse “[…] não se faz necessário que os estamentos mais inferiores da nossa carreira tenham a oportunidade de apresentar, de iluminar diretamente a sociedade”.
A expressão em tela além de ter gerado controvérsias causou a algumas pessoas um sentimento de tristeza, em função de um eventual desprestígio; que pôde ser verificado inclusive em relatos de leitores.
Deste modo acredito ser oportuno esclarecer algo sobre “os estamentos inferiores”.
…
1. No nosso Estado Democrático de Direito, em uma democracia semi-direta, vigora o Princípio da Legalidade onde BARTINE e SPITZCOVSKY explicam; “enquanto aos particulares é conferida a possibilidade de fazer, na defesa dos seus interesses e do seu patrimônio, tudo aquilo que a lei não proíbe, a Administração, na defesa dos interesses da coletividade, só poderá fazer aquilo que a lei expressamente determina”(3). Assim sendo, cabe verificar agora em qual legislação ou ato normativo existe uma explicação ou definição para a expressão em tela.
2. Porém ao se fazer a análise sobredita, encontra-se logo o primeiro problema. Não existe definição jurídica que estabeleça quem poderia ser chamado de estamento inferior; seriam coronéis, tenentes, sargentos, cabos? Nesta hora de cobrança ninguém sabe, ninguém viu.
3. A verdade é que não consta nas denominações dos postos, graduações ou círculos hierárquicos das Forças Armadas ou até mesmo das Polícias e Bombeiros Militares quaisquer definições sobre o tema.
4. Em consulta ao Estatuto dos Militares (Lei n° 6.880/80), ao Código Penal Militar (CPM), Código de Processo Penal Militar, legislações correlatas e também em doutrinas sobre o assunto, podendo se citar as de ABREU (4), LOBÃO (5), LOUREIRO NETO (6), ROSSETO (7) e CRUZ (8); nada foi encontrado. Deste modo raciocino m.j que o porta-voz inovou ao “criar” uma nova designação/ círculo hierárquico; entretanto não aproveitou a oportunidade para definir a composição do mesmo.
5. Pelo exposto, ocorre o segundo problema; o porta-voz teria essa autonomia? A pergunta se torna pertinente, pois muitos questionam se o pronunciamento e a expressão consequente teriam tido por autoria o Presidente ou o porta-voz.
Se a expressão partiu única e diretamente do porta-voz, mesmo com todo o respeito ao cargo, infelizmente preciso dizer que dentro do Direito Administrativo o mesmo não tem competência legal para expor opiniões ou criar definições próprias; o que a princípio aparenta ser correto até para que sejam evitados mal entendidos.
Claro que todo cidadão brasileiro tem direito a liberdade de expressão e o porta-voz encontra-se inserido nesta garantia, porém quando representa o Presidente, sua voz tem que ser a da Presidência; situação totalmente diferente, por exemplo, se o mesmo comparecesse a um programa de entrevistas e lá explanasse o seu douto intelecto; nesta última situação não é o porta-voz que responde a entrevista; é o cidadão que ocupa o cargo. Até entendo que dependendo dos casos, pode ser penoso para um porta-voz não poder se pronunciar diante tantos fatos que tenha grande conhecimento;…porém nem tudo é bônus.
Sobre a competência administrativa é preciso esclarecer ao leitor, conforme COUTINHO que “na Administração Pública não é competente quem quer, mas quem possui atribuição para tanto, a qual, por sua vez, é criada pela lei”(9). Nesta linha de pensamento presume-se que a criação de postos e graduações não seja de competência de um porta-voz.
9. Quando a competência, que é um dos elementos do ato administrativo, é atingida o ato passa a ser considerado viciado; podendo haver dois tipos de vícios; o de excesso de poder e a usurpação de função. No caso em estudo, na forma de um equívoco, entende-se a princípio ter havido um excesso de poder, onde o agente possui competência para suas atribuições, mas ultrapassa os limites.
Existem linhas doutrinárias como a seguida por ARAS onde se explica que “os atos meramente opinativos, como os pareceres de consultoria jurídica, por não produzirem efeitos jurídicos imediatos, não são considerados atos administrativos propriamente ditos”(10); assim sendo mesmo que o pronunciamento possa ser considerado um ato meramente opinativo, o mesmo não pode ter efeito decisivo na vida das pessoas.
Sobre questionamento se o “ato” não poderia ser convalidado, sendo declarado como expedido pelo Sr. Presidente; digo que é possível, porém aí surge o terceiro problema. Estaria o governo disposto em ampla cobertura de imprensa, dizer que pessoas x e/ou y são estamentos inferiores que não podem se expressar, nem iluminar a sociedade; banindo assim essas pessoas do exercício pleno da democracia e, entrando em colisão, em tese, com a proibição de discriminações de qualquer natureza, conforme Art. 3°, Inc. IV e Art. 5°, caput, ambos da CF?
O tom equivocado do pronunciamento reflete um estrutura triste desenvolvida por alguns, que procuram restringir a participação de segmentos da sociedade pelas posições que ocupam na mesma. O interessante é que mesmo após a Revolução Gloriosa na Inglaterra, a Revolução pela independência americana, a Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a nossa Constituição Cidadã de 88, continuamos na eterna luta para que todos sejam em iguais em dignidade e direitos.
13. De todas as ideias surgidas dos movimentos acima, verifica-se que é mais fácil fornecer a liberdade do que a igualdade. A verdade é que seja no mundo antigo ou atual, é mais fácil libertar um homem do que vê-lo nas mesmas condições de igualdade dos outros, ou seja, é mais fácil um “senhor” libertar um “servo”, do que lhe permitir uma condição de igualdade com os demais senhores; neste pensamento SILVA escreve “[…] a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade quanto reivindicaria o de liberdade” (11).
Mesmo existente a frase de Aristóteles onde “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”(12); deve-se prestar atenção, pois embora haja relevância desse princípio ao ligar a ideia da igualdade ao da justiça; o mesmo pode quando não bem dimensionado induzir o intérprete a um erro, relatado novamente por SILVA quando menciona que “no fundo, prevalece nesse critério de igualdade, uma injustiça real”(13) .
Neste momento da leitura peço encarecidamente ao leitor que não embarque, ao menos de imediato, no trem que adentra no túnel do tempo retrô brasileiro e que sempre para entre os anos de 1964 e 1985. Resista um pouco; pare e pense, vamos refletir sobre o assunto.
Esse túnel do tempo retrô, está fazendo que momentos antes esquecidos voltem de forma tensa, às vezes até usando uma roupagem diferente. Situações como a perda de direitos; a imposição do medo, a volta do taxamento de pessoas como comunistas, subversivas, etc; o enfraquecimento de instituições democráticas; problemas sobre a liberdade de imprensa, supostas censuras, o afastamento de pessoas pelo não alinhamento com o governo, ideologias, ligação de pessoas a movimentos guerrilheiros (que já foram extintos a anos), tudo começa a voltar, sendo necessário escrever ainda um trecho do Juiz de Direito Marlon Reis, citado por CONSTANTINO; “apelo ao messias salvador da pátria, essas são táticas para adensar ainda mais a cortina de fumaça que nos asfixia”(14).
Em função de todo este ambiente tenso atual, preciso como advogado, rogar aos leitores; que somente façam aquilo que a legislação não proíba; mantenham um ânimo calmo/ refletido, o respeito às instituições e procurem manter uma postura equilibrada diante pessoas físicas e/ou jurídicas, sejam elas de direito público ou privado; pois podem ter certeza, existem pessoas que procuram um mero detalhe para dizer que ocorre uma “incitação à desordem”; e esse filme…eu já vi.
18. Saindo do aspecto social; passagem necessária, pois direito e sociedade andam de mãos dadas; retornando ao ponto base deste artigo; por tudo já explicado, o leitor não precisa mais se entristecer ou se sentir amargurado pela expressão “estamentos inferiores”.
19. De forma resumida este advogado não pode considerar a expressão debatida, entendendo tudo como um grande equívoco, afinal:
Não existe definição indicadora de quem comporia os “estamentos inferiores”;
Se o pronunciamento partiu de uma opinião pessoal do porta-voz quando representando a Presidência, o mesmo não possui competência administrativa para o ato; e
Mesmo que o Presidente convalidasse o ato, esclarecendo que o posicionamento foi dele; isto poderia em tese colidir contra vários Princípios Gerais do Direito, da Constituição e até de forma reflexa, mesmo que radicalmente, contra a Lei do Impeachment.
20. Tudo exposto, como complemento informo que sigo as palavras do anterior Presidente da OAB (Dr. Claudio Lamachia), “meu partido é o Brasil e minha ideologia é a Constituição”, e para finalizar cito a filosofia de CORTELLA; “[…] democracia não é ausência de divergências mediante sua anulação. É a convivência das divergências sem que se chegue ao confronto”(15).
Cachoeiras de Macacu (RJ), 23 de julho de 2019. // Alessandro M. L. José. (*) / Advogado – OAB/RJ 215918
(*) – Advogado atualmente Presidente da Comissão de Direito Militar da 49ª Subseção da OAB/RJ, Pós- Graduado em Direito Penal/ Proc. Penal; e Constitucional/ Administrativo. Email: advo.dr.jose@outlook.com.
Obs: O presente artigo tem um caráter informativo/ técnico, objetivando uma análise jurídica dentro do panorama atual da sociedade brasileira; tendo sido redigido pelo que sobrescreve, na condição de advogado, Presidente da Comissão de Direito Militar da 49ª Subseção da OAB/RJ, utilizando as prerrogativas do Art. 133 da CF e do Art. 7°, §2°, do Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906/94) – (imunidade profissional); não havendo pretensão de críticas a quaisquer instituições do Estado Brasileiro ou as diretrizes das mesmas.
Notas.
(1) – Sociedade militar. Estamentos inferiores. Disponível em https://www.sociedademilitar.com.br/wp/2019/06/estamentos-inferiores-assessor-de-imprensa-do-presidente-causa-polemica-ao-dizer-que-graduados-nao-podem.html. Acesso em 19 Jul. 2019.
(2) – Estamentos inferiores. Disponível em https://www.sociedademilitar.com.br/wp/2019/06/estamentos-inferiores-assessor-de-imprensa-do-presidente-causa-polemica-ao-dizer-que-graduados-nao-podem.html
(4) – ABREU, Jorge Luiz Nogueira de. Direito administrativo militar. 2. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. 409p. 1p. Et seq.
(5) – LOBÃO, Célio. Direito penal militar. 2. ed. atualizada. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. 1p. Et seq
(6) – LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito penal militar, 4. ed. São Paulo: Atlas, 2001. 1p. Et seq.
(7) – ROSSETO, Enio Luiz. Código penal militar comentado. 2. Ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribuanais, 2015.1p. Et seq.
(8) – CRUZ, Ione de Souza; MIGUEL, Claudio Amin. Elementos de direito penal militar – Parte geral. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2005. 1p. Et seq
(9) – COUTINHO, Alessandro Dantas; RODOR, Ronald Kruger. Direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense ; São Paulo: Método, 2015. 398p.
(10) – ARAS, José. Direito Administrativo – Método de estudo OAB. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, 16p.
(11) – SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2009. 210p.
(12) – Frase de Aristóteles. Disponível em < https://kdfrases.com/frase/120428>. Acesso em: 14 Jul. 2018.
(13) – SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2009. 213p. Grifei.
(14) – CONSTANTINO, Rodrigo. Brasileiro é otário? O alto custo da nossa malandragem. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2016. 115p.
(15) – CORTELLA, Mario Sergio. O melhor do Cortella – trilhas do pensar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. 90p. Grifei.
https://www.sociedademilitar.com.br/wp/2019/07/a-polemica-do-dito-maldito-pelo-general-que-e-porta-voz-do-presidente-estamentos-mais-inferiores.html
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