Roubar e roubar
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636
*Por J.R. Guzzo*
Quer fazer um teste para saber em alguns segundos como você
ajuda a manter de pé um dos mais notáveis monumentos à concentração de renda
que existem atualmente no mundo? Pegue as suas últimas contas de telefone ou de
luz e vá até onde está escrito “total a pagar”. Se você é um morador de São
Paulo, por exemplo, verá que 25% desse total é imposto puro, o ICMS — ao qual se
somam outras taxas que o governo ainda consegue lhe arrancar. O que não se vê
na conta é que quase 10% do ICMS arrecadado a cada vez que alguém acende a luz
ou fala ao telefone vai direto para o caixa das três universidades públicas de
São Paulo. Acontece todo santo mês, sem falhar nunca, e provavelmente vai
continuar acontecendo até o fim da sua vida. Mais: esse pedágio é retirado de
todo ICMS pago no estado — não só nas contas de luz, telefone ou gás, mas em
qualquer outra coisa cuja existência o Fisco paulista consiga identificar
dentro do território estadual.
Uma vez sacado do seu bolso, o dinheiro vai para jovens, em
geral de boa família, estudarem de graça temas como arte lírica, ou
educomunicação, incluindo aí “prática epistemológica do conceito” e “gestão
democrática de mídias”. Podem estudar armênio. Podem tentar um diploma de
semiótica sobre “linguagens imaginárias”, ou sobre a “imanência e
transcendência na emergência do sentido”. É claro que o contribuinte paga todos
os cursos das três universidades — e muitos deles são indispensáveis. Mas isso
não melhora nada. Só significa, na prática, que os cursos úteis para a
sociedade recebem menos dinheiro porque têm de dividir a verba com os inúteis.
Aliviado por não morar em São Paulo? Esqueça. Há o dragão das universidades
federais — um bicho que pega geral, até o último confim do Acre. A diferença é
que o paulista, e os cidadãos de todos os estados que mantêm universidades,
toma duas contas no lombo.
O fato é que os impostos pagos por todos os trabalhadores
brasileiros são doados aos filhos das classes média e alta para que estudem na
universidade pública sem pagar um centavo. Isso se chama transferência de renda
do mais pobre para o mais rico — que passou no vestibular porque foi capaz de
financiar seu ensino básico em escolas particulares. Não tem conversa: se o
governo tira de todos e dá a alguns, está tomando dinheiro da pobralhada, que é
80% desse “todos”, e fazendo um presente para a minoria que forma o “alguns”. É
um método praticamente infalível, se você quer manter as desigualdades neste
país exatamente como elas estão. Uma excelente escolha, também, para fazer a
pobreza no Brasil durar o máximo de tempo possível. Em compensação, o sistema
nos dá as universidades federais “gratuitas” — são nada menos que 63 ao todo,
que talvez sejam 68, segundo os caprichos da burocracia educadora nacional.
Esse monstro é caro, injusto e burro. Dos cerca de 120
bilhões de reais do Orçamento federal de 2019 para a educação, quase metade vai
para as universidades — o contrário do que a inteligência mais rudimentar
recomenda a um país onde o ensino básico está em colapso há anos e que, por
causa disso, ocupa o 119º lugar na classificação mundial dos países segundo a qualidade
da sua educação. Grande parte dessa despesa vai para o lixo. Na Universidade
Federal do ABC, que custa mais de 250 milhões de reais por ano, há uma
licenciatura em “afro-matemática” — aparentemente, a equação de segundo grau ou
a progressão geométrica, do jeito que os alunos aprendem hoje, são “brancas”, e
“reproduzem o racismo nas salas de aula”. É preciso, portanto, “descolonizar os
referenciais teóricos”. Há uma Universidade Federal da Integração
Latino-Americana. Há uma da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira. Há uma Universidade Federal da Fronteira Sul e uma
Universidade Federal do Pampa.
Nenhuma delas está entre as 150 melhores universidades do
planeta segundo o ShanghaiRanking, um dos termômetros mais respeitados para
medir a qualidade mundial da educação superior. Em outra lista de prestígio, a
Times Higher Education, o resultado é pior: não há nenhuma brasileira entre as
melhores 250. Dá o que pensar. Ou o Brasil se livra dos educadores, ou os
educadores conduzirão o Brasil ao nível de instrução vigente na Idade da Pedra.
Há outra consideração a fazer, na sequência. Um jeito conhecido de roubar
dinheiro público é fechar-se numa sala com Marcelo Odebrecht, por exemplo.
Outro é ensinar imanência e transcendência na emergência, com o dinheiro do
ICMS que você pagou na sua última conta de luz. O primeiro jeito talvez acabe
saindo mais barato.
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636
Comentários
Postar um comentário