Conflito Rússia X Ucrânia: Emprego do poder aeroespacial
O conflito entre a Rússia e a Ucrânia, iniciado em 24 de fevereiro de 2022, tem sido analisado extensivamente. Predominam comentários sobre as perspectivas das relações internacionais, da geopolítica, da economia, das questões humanitárias ou legais e quanto às operações das forças de superfície. Análises essencialmente militares, sob o ponto de vista da teoria e da doutrina militares, não são facilmente acessíveis em língua portuguesa e, mesmo, em inglês.
Com a finalidade de iniciar o debate em torno das questões sobre o emprego do poder aeroespacial nesse conflito, neste artigo analiso alguns temas publicados na mídia, à luz de aproximações teóricas e doutrinárias, com o objetivo de incentivar a discussão em torno do assunto e a produção de análises do ponto de vista operacional que possam suscitar uma melhor compreensão em torno do conflito.
O texto divide-se em três segmentos. O primeiro, uma aproximação teórica sobre o que pode ser observado da cultura soviética/russa em relação ao emprego do poder aeroespacial. O segundo debate algumas afirmações de jornalistas e especialistas sobre fatos observados no conflito. Por fim, na terceira porção, apontamos temas com potencial para novas análises, a se observar os desdobramentos da guerra e a disponibilização de novas informações. Em alguns casos, destaco comentários que coloco como instigadores do debate, todos representando minha visão pessoal dos acontecimentos e que não representam, necessariamente, a opinião oficial de instituições nas quais labuto.
1. Background doutrinário
Sem a devida compreensão do background histórico, em especial quanto à evolução da doutrina de emprego do poder aeroespacial, não é possível interpretar corretamente esse emprego no conflito atual (2022) entre a Rússia e a Ucrânia, em especial, quando as fontes ainda são restritas ao noticiário sobre a guerra ou declarações oficiais dos governos russo e ucraniano, sobre as quais a influência de operações psicológicas/guerra de informação é um fator a ser considerado.
Do ponto de vista da aplicação do poder aeroespacial russo, há que se considerar que já nos anos 1990, militares soviéticos alertavam para uma “revolução técnico-militar”, como foi o caso do marechal Nikolai Ogarkov. O impacto da tecnologia e de novas concepções doutrinárias de emprego do poder aeroespacial foi percebido pelos então soviéticos, justamente após as inovações da Guerra do Golfo de 1991. A dúvida atual é se essas “lições” foram efetivamente assimiladas. Isso está no centro das discussões sobre as operações aéreas neste conflito de 2022.
Um influente autor australiano de origem indiana, Sanu Kainikara, já apontava que, no início dos anos 1990, a Força Aérea estava em processo de emergir como uma força claramente independente, porém a dissolução da URSS (1991) pode ter gerado atrasos nesse processo. Segundo o autor:
“A seguinte partição de meios aéreos entre as repúblicas que se tornaram independentes da URSS forçou a força aérea a fazer um balanço da situação e instituir medidas corretivas para continuar seu movimento para se tornar uma força verdadeiramente independente e eficaz”[1].
Do ponto de vista Ocidental, é relevante perceber essa tentativa de movimento de independência do pensamento teórico e doutrinário da força aérea russa, atualmente denominada VKS (Vozdushno-kosmicheskiye sily, Força Aeroespacial Russa). Ainda segundo Kainikara:
“Houve também oportunidade, nesta conjuntura, de renovar o pensamento doutrinário, que infelizmente foi apenas parcialmente utilizado. Há indícios de que o processo de revisão doutrinária ainda está em andamento e pode ainda dar o impulso necessário para uma mudança maior. A Força Aérea Russa está passando por uma transição nesta esfera e está doutrinariamente mais alinhado com as visões gerais do poder aéreo ao redor do mundo como nunca antes”[2].
Percebe-se, portanto, que o processo de alinhamento doutrinário com expectativas teóricas (também as decorrentes das experiências em conflitos desde a Segunda Guerra Mundial) estaria em curso, apesar das dificuldades do processo histórico de consolidação da Rússia. Ou seja, é plausível supor que o pensamento teórico e doutrinário da VKS ainda não esteja completamente consolidado.
Possivelmente, uma evidência desse processo em curso seja aquela apontada pelo documento Russia Military Power, expedido pela Agência de Inteligência de Defesa (DIA, Defense Intelligence Agency) dos EUA, de 2017, informando que:
“Desde 2008 a Força Aérea Russa investiu recursos financeiros sem precedentes no poder aéreo que incluem a atualização e/ou nova construção de aproximadamente 700 aviões de combate/bombardeiro até 2020, para substituir sistemas antigos”[3].
É de se supor que tal investimento financeiro seja decorrente de uma nova forma de pensar a guerra aeroespacial.
Comentários: Em grande parte, devemos considerar se as experiências soviética/russa do Afeganistão (1988), Geórgia (1991-93 e 2008), Chechênia (1994-96 e 1999-2009), Ucrânia (2014) e Síria (2015-), incentivaram essa tendência de revisão doutrinária ou reforçaram aspectos de emprego do poder aeroespacial em contextos de insurgência, fato que tem sido amplamente discutido nas forças armadas ocidentais (EUA e Europa). Lá, infere-se que os longos anos de combate ao terror e aos insurgentes foram perniciosos para o pensamento sobre o emprego do poder aeroespacial em contextos simétricos. A DIA, no documento citado, entende que a participação russa no conflito da Síria (desde 2011), foi limitado, com “emprego de um número reduzido de plataformas aéreas”[4]. Lester Grau e Charles Bartles (The Russian Ground-Based Contingent in Syria, 2020, p. 87)[5] sugerem que a VKS teria aprendido algumas lições no conflito da Síria, dentre elas a de que “conflitos não podem ser vencidos apenas pelo poder aéreo. Aqueles que são atacados pelo ar desenvolvem soluções alternativas e contramedidas”. Anton Lavrov (Russian Aerial Operations in the Syrian War, 2020)[6] consideram que “a campanha [na Síria foi] mais uma operação de contrainsurgência do que uma guerra convencional com um oponente igual ou próximo (peer ou near-peer)”. Por esses motivos, há evidências de que a Rússia teria se envolvido no conflito da Síria com a expectativa principal de fornecer apoio aproximado às forças de superfície.
Os fatos da Síria e o background da evolução doutrinária são importantes pontos a se considerar, pois observa-se uma tendência de se nivelar análises a partir da perspectiva ocidental (um fenômeno conhecido na antropologia como etnocentrismo). Por esse motivo, cabe questionar se efetivamente a força aérea russa pensa, planeja e age doutrinariamente como as forças aéreas ocidentais (EUA e OTAN). Ou seja, já existe um grau de maturidade doutrinária para uma analogia com o pensamento ocidental?
2. Notícias e opiniões de analistas
Neste segmento voltamos nossa atenção para notícias sobre o emprego do poder aeroespacial que têm sido publicadas. Sobre elas, faremos algumas considerações levando em conta a doutrina brasileira, especificamente aquela relativa ao Poder Aeroespacial[7].
Justin Bronk, comentando os recentes eventos na Ucrânia, em The Mysterious Case of the Missing Russian Air Force, aponta que:
“Em 24 de fevereiro/2022, uma grande salva de mísseis balísticos e de cruzeiro destruiu os principais radares terrestres de alerta antecipado em toda a Ucrânia; além disso, ataques aéreos criaram crateras em pistas e taxiways nas principais bases aéreas ucranianas; também foram registrados ataques que atingiram baterias de mísseis terra-ar (SAM) S-300P, de longo alcance, ucranianos”[8].
Comentários: Os fatos relatados guardariam coerência com os propósitos das tarefas de controle aeroespacial (offensive counter-air) e interdição[9]. Ao passo que o “controle aeroespacial” tem o propósito de viabilizar o uso do espaço aéreo com algum grau de segurança, a interdição visa a neutralização de infraestruturas críticas e, também, a desestabilização de linhas de comunicação (essencialmente, elementos da infraestrutura de transportes que viabilizam o trânsito de suprimentos entre a zona do interior/zona de defesa/zona administrativa para a linha de contato).
Um primeiro ponto a se perceber na notícia é a participação de mísseis, balísticos e de cruzeiro, naquilo que pode ser identificado como uma incipiente (na visão do autor da notícia) campanha para a obtenção de superioridade aérea (no léxico doutrinário nacional denomina-se controle aeroespacial). Não é nada surpreendente a utilização desse tipo de equipamento (mísseis) nesse contexto. Porém, um alerta importante que se faz é para aquelas forças aéreas que ainda jazem na premissa de que apenas aeronaves participam dessa importante tarefa preliminar de qualquer conflito.
Isso abre a oportunidade de estudos, por exemplo no Brasil, em torno do AV-MTC, míssil de cruzeiro desenvolvido pela Avibrás, sob o viés da integração do mesmo à essa campanha.
Apesar de direcionar a atenção inicial do leitor para as ações iniciais da Rússia na guerra, Bronk dá uma guinada na matéria e sugere que essa ação inicial teria sofrido solução de continuidade (“cerca de 300 modernos aviões de combate russos parecem ter permanecido no solo durante os primeiros quatro dias de combate”).
Do ponto de vista da doutrina brasileira, o controle aeroespacial (ideia que remonta à contribuição de Giulio Douhet e o “domínio do ar”[10]) sofre influência de determinados fatores[11] e pode gerar demandas além das capacidades disponíveis, levando a cálculos sobre equilíbrio em torno dos meios empregados e os efeitos desejados. É possível que a VKS esteja enfrentando esse dilema no momento, apesar da aparente superioridade numérica e tecnológica (fatores que, isoladamente, não determinam o sucesso). Importante recordar que o controle aeroespacial pode ser obtido/almejado em diferentes graus[12]. Nesse sentido, seria interessante questionar qual grau de controle aeroespacial (supremacia, superioridade ou situação favorável) foi pré-estabelecido pelos planejadores russos. Até mesmo o menor nível pode ser aceitável (situação aérea favorável) e, aparentemente, tem sido obtido no conflito[13]. Algumas outras evidências podem ser apontadas.
Segundo Henry Foy e John Paul Rathbone, em artigo no periódico Financial Times, “o papel reduzido do poder aéreo até agora na guerra não se deve a nenhum dos lados estabelecer superioridade nos céus acima do campo de batalha”[14].
Didier Lauras, no periódico The Times of Israel, cita um comentário da Mediterranean Foundation of Strategic Studies que assevera que “os russos certamente [tenham adquirido] superioridade aérea ao longo de um trecho de 200 quilômetros (125 milhas) perto da fronteira e em torno de objetivos prioritários”[15]. Tal afirmação corrobora a ideia de controle aeroespacial nas perspectivas geográfica e, plausivelmente, temporal.
Há, ainda, a percepção de Lester W. Grau e Charles K. Bartles que nos fornecem outra perspectiva de análise:
“A Rússia acredita que os EUA/OTAN manterão no ar a superioridade, e por isso investiu pesadamente em tecnologias de mísseis [superfície-ar] para preencher um nicho de contraposição ao poder aéreo dos EUA/OTAN. Por razões semelhantes, a Rússia também investiu fortemente em guerra eletrônica e defesa aérea”[16].
Bronk, no artigo citado, em decorrência desse grau de controle aeroespacial, afirma que:
“A falta de caças russos de asa fixa e surtidas de aeronaves de ataque também permitiu que operadores de SAM e tropas ucranianas com MANPADS, como o míssil Stinger, fabricado nos EUA, engajassem helicópteros e transportes russos com risco significativamente menor de retaliação imediata”.
Comentários: A se confirmar tal situação, além de ser comprovação sobre a questão do grau de controle aeroespacial obtido pela VKS, ressalta um aspecto que tem sido amplamente comentado no âmbito de discussões em torno do emprego do poder aeroespacial: a vulnerabilidade dos helicópteros e aviões de transporte. Segundo Michael Kofman (Syria and the Russian Armed Forces: an Evaluation of Moscow’s Military Strategy and Operational Performance), relembrando o conflito na Síria, destaca que:
“Muitas das poucas perdas que a Rússia sofreu na Síria estava entre a aviação rotativa. De acordo com [os dados disponíveis], os russos perderam sete aeronaves e 12 helicópteros, dos quais apenas uma aeronave foi perdida em combate em comparação com seis helicópteros”[17].
Esse é um importante indicador para debates em torno de ações mitigadoras, caso tenhamos a perspectiva de repetir ações como aquelas observadas na guerra. Essas ações se traduzem em dispositivos de autodefesa (flares e chaffs), técnicas de navegação e infiltração (por exemplo, Nap of Earth), composição de missões (interferência eletrônica, varredura, escolta)[18], e coordenação com o movimento das forças de superfície.
Ainda no mesmo artigo, Justin Bronk sugere algumas explicações para o que parece ter sido uma não aderência da força aérea russa ao pensamento doutrinário ocidental em torno do emprego do poder aéreo (importante lembrar que essa análise pode estar associada à falácia de interpretação sob o viés Ocidental, como sugerimos acima).
A primeira das explicações é a seguinte:
“A quantidade limitada de munições guiadas de precisão (Precision Guided Munition, PGM) lançadas pelo ar disponíveis para a maioria das unidades de caça da VKS. Isso, combinado com a falta de pods de mira para detectar e identificar alvos no campo de batalha a uma distância segura, significa que a capacidade dos pilotos de asa fixa do VKS de fornecer apoio aéreo aproximado para suas forças é limitada”.
Comentários: Não há dúvidas quanto ao fato de PGM serem armas preferenciais no emprego a partir do ambiente aeroespacial. Porém, essa realidade não é uma surpresa absoluta, como parece sugerir o autor. Novamente Michael Kofman, analisando a atuação da VKS na Síria, aponta que:
“As Forças Aeroespaciais Russas foram ineficazes no apoio aéreo aproximado ou no ataque a formações de manobra. As munições russas eram muito grandes, muito burras, e inadequadas para a tarefa de combater as forças móveis. Ataques aéreos foram incrivelmente caros em baixas civis, e as evidências mostram que o ataque a alvos de infraestrutura civil crítica, como hospitais, em vários casos foi deliberado”[19].
Em outra análise, Anton Lavrov afirma que:
“A maior diferença entre a capacidade da VKS quando comparada com forças aéreas ocidentais [EUA e OTAN] está na área de munições de precisão. Ainda em 2019-2020 bombas grandes não guiadas [burras] foram as armas de escolha, especialmente para alvos leves e estacionários, onde seu poder explosivo compensa sua falta de precisão”[20].
O ponto central na discussão é o inventário limitado de armas de precisão da VKS, já desde a Síria e que parece se repetir nesse conflito com a Ucrânia. Apesar disso, o inventário limitado não é uma explicação suficiente.
Aeronaves relativamente antigas como o Su-24M e o Su-25SM têm sofrido updates tecnológicos em seus sistemas de armas, com dispositivos de visada digitais para emprego de armas não guiadas (como é o caso do sistema da empresa Gefest), que permite ataques com um grau de precisão bastante considerável. Segundo Lavrov esses dispositivos “permitem o uso de bombas não guiadas com graus de precisão perto das armas inteligentes”[21].
Um ponto em torno dessa questão em debate é o tamanho do arsenal de PGM e, subsidiariamente, alternativas de armas burras utilizadas com sistemas convencionais de emprego (3ª ou 4ª geração de aeronaves) que permitam erros circulares prováveis admissíveis.
No primeiro caso, há que se retornar à discussão em torno de ameaças latentes, hipóteses de emprego, cenários conjunturais (ou mesmo o planejamento baseado em capacidades), questões de prioridade orçamentária – temas que extrapolam o propósito desta análise. Vejamos, por exemplo, a apreciação de Reuben F. Johnson apontando que:
“A Rússia é uma potência militar forte, mas o futuro de seu poder aéreo é de deterioração contínua. Essas são consequências de anos de negligência no financiamento de sua indústria aeroespacial e da gestão econômica geral que não conseguiu fornecer a atividade econômica sustentada para apoiar o desenvolvimento de indústrias de alta tecnologia. Os atuais programas de próxima geração em desenvolvimento provavelmente nunca entrarão em produção”[22].
No segundo caso, a correta seleção dos armamentos e dimensionamento da força é um imperativo para o poder aeroespacial.
Isto nos leva a um tema que demanda ser explorado. Bombas inteligentes demandam inteligência inteligente! A “Inteligência Aérea” é a atividade que provê análises preliminares e posteriores ao ataque que maximizam os efeitos de emprego de qualquer tipo de armamento. Por esse motivo, deve ser seriamente considerada. Afinal, uma arma de precisão (inteligente) direcionada ao alvo errado transforma-se em um ataque burro! Por outro lado, uma bomba convencional que atinja um alvo corretamente identificado transforma-se em um ataque inteligente!
No caso do conflito russo-ucraniano o simples fato de PGM limitada no inventário russo não é uma surpresa, tampouco um problema insolúvel para os planejadores russos.
O segundo comentário que Justin Bronk faz em seu artigo é:
“O VKS não está confiante em sua capacidade de desconflitar com segurança surtidas em larga escala com a atividade de SAM terrestres russos operados pelas Forças Terrestres”.
Ou ainda:
“A quase total falta de varreduras antiaéreas ofensivas russas (OCA) foi associada a uma coordenação muito ruim entre os movimentos das forças terrestres russas e seus próprios sistemas de defesa aérea de médio e curto alcance”.
Comentários: Aparentemente, há uma falta na capacidade de integração das ações aéreas com as ações de superfície. Outras análises também indicam que há falta de coordenação entre a VKS e as unidades da força terrestre, observada no deslocamento e avanço de formações blindadas e de infantaria sem a devida proteção aérea, tornando essas formações vulneráveis a ataques como o de drones[23]. Apesar de ter sido um duro julgamento do autor em torno de um ativo essencial do poder aeroespacial – o comando e controle (C2) das operações aeroespaciais –, há que se considerar alguns elementos que podem contribuir com a melhor percepção da questão.
Um primeiro elemento é o grau de independência de C2 que possui a VKS. Sobre isso, Lester W. Grau e Charles K. Bartles afirmam que:
“A Força Aérea Russa é considerada um ramo completo de serviço, mas tem lutado nos últimos anos para manter o controle operacional de sua aviação do exército (aeronaves de ataque ao solo e helicópteros) e transporte aéreo das Forças Terrestres e Aerotransportadas Russas (VDV), que há muito desejavam integrar esses recursos como ativos orgânicos em suas próprias organizações”[24].
Os mesmos autores identificaram que a VKS tem responsabilidade frente às “missões de superioridade aérea e interdição, mas também fornece apoio aéreo aproximado em situações críticas como assalto aéreo, travessias de rios ou progressão em áreas descobertas”. Apesar disso, “Os helicópteros e aeronaves de apoio aéreo aproximado da aviação do exército fornecem apoio aéreo aproximado”[25].
De certo que a partição de meios entre a força aérea e o exército, inclusive no que tange aos mísseis de cruzeiro, mísseis balísticos, UAV (SARP), demanda coordenação nos níveis operacional e tático. Tal percepção foi reforçada por David Deptula, militar americano com vasta experiência no planejamento, comando e controle de operações aeroespaciais, ao afirmar que as “forças armadas russas têm sentido dificuldade em coordenar operações multidomínio”[26].
Por outro lado, a se julgar que existem mínimas condições de coordenação, essa aparente falta de capacidade de C2 pode ser explicada pela aversão ao risco desnecessário, evitando expor os meios aeroespaciais à neutralização por parte das forças armadas ucranianas, em especial às armas superfície-ar ou mesmo às aeronaves. Novamente, aqui, entra o cálculo de opções em torno do grau de controle aeroespacial que se pretende obter. Anton Lavrov, analisando o caso da Síria, parece dar amparo a essa visão, e parcialmente explicam a situação atual na Ucrânia, quando asseguram que, “o medo de perdas do comando russo explicaria, pelo menos parcialmente, a ineficácia precoce das operações aéreas russas naquele conflito”[27].
Outro ponto intrigante nesse debate em torno de coordenação foi o que afirmou o periódico Al Jazeera, quando sugeriu que, segundo os EUA, “a Rússia estaria usando pouco mais de 75 aeronaves na invasão da Ucrânia”[28]. No contexto de operações aeroespaciais esse número pode ser considerado reduzido e de baixa demanda de coordenação aeroespacial.
Esse fato, a se confirmar, nos leva a um raciocínio semelhante, que também exige grau significativo de coordenação. Trata-se da integração de aeronaves distintas em torno de um propósito maior comum, conhecido no jargão militar como missão composta. Ela articula diferente missões exigindo alto grau de coordenação. Diferencia-se técnica e doutrinariamente da perspectiva de emprego de aeronaves em missões isoladas, e exige alto grau de treinamento.
Essa observação nos leva à apreciação da terceira, e final, explicação de Justin Bronk sobre a ineficácia da atuação do poder aeroespacial russo.
“Número relativamente baixo de horas de voo que os pilotos VKS recebem a cada ano em relação à maioria de seus colegas ocidentais, declarações oficiais russas periódicas sugerem uma média de 100 a 120 horas por ano no VKS como um todo.”
Comentários: A par da questão do moral e da resiliência, fatores apontados como hipótese para a possível resistência ucraniana (A capacidade ucraniana em continuar com as operações aéreas seria resultado da resiliência natural e do moral elevado da tropa[29]), o adestramento operacional é um fator singular de análise, mas não deve ser encarado como única explicação (falácia: pilotos russos mal treinados são incompetentes operacionalmente).
Há uma diferença significativa entre quantidade e qualidade em termos de treinamento para as capacidades desejáveis de uma força aérea. Em especial, quando se considera que, até o momento, a VKS está em combate com uma força que utiliza os mesmos equipamentos, sistemas, muito provavelmente doutrina, e possivelmente quantidade de horas de treinamento de voo similares. Em termos de equipamento, segundo o Jane’s Ukrainian Equipment Profile[30] e o Military Balance 2021[31], os principais meios aeroespaciais da Ucrânia são: os MiG 29; os Su-24, 25 e 27; mísseis superfície-ar S-300V (SA-12A Gladiator), K330 Tor-M (SA-15 Gauntlet), K35 Strela-10 (SA-13 Gopher), K33 Osa-AKM (SA-8 Gecko) e K22 Tunguska (SA-19 Grison). Todos de fabricação russa!
Por esse motivo, os valores de horas de voo apontados como insuficientes, ao serem relativizados, podem indicar realidades diferentes. Certamente que, comparados com valores ocidentais (EUA e/ou OTAN), uma disparidade pode ser observada. De qualquer forma, a VKS provavelmente deve priorizar seu esforço de treinamento naquilo que doutrinariamente entende como aplicação do poder aeroespacial, e não no que o Ocidente entende como sendo correto (isso retorna nosso argumento ao background doutrinário).
3. Temas potenciais
Uma tendência que merece ser observada nos próximos desdobramentos do conflito é a migração dos combates para ambientes urbanos, considerando-se que a resistência ucraniana não irá sucumbir. Essa tendência poderá acontecer, pois há sinais de que a Rússia pode estar mudando para um maior uso do poder aéreo à medida que suas ofensivas terrestres adentram nas áreas urbanas. Grau e Bartles, ainda sobre o conflito na Síria, observaram que:
“Durante uma ofensiva em uma cidade (áreas urbanas) um papel especial é desempenhado por pequenas unidades funcionando separadamente em missões de esquadrão. A ofensiva é determinada pela densidade de edifícios e disponibilidade de espaço, parques, utilidades subterrâneas, ruas etc. Um ataque bem-sucedido só pode ser alcançado pela estreita cooperação do rifle motorizado (tanque) pelotões (companhias, batalhões) com outros tipos de tropas, apoiados por artilharia e aviação”[32].
A par dessa questão do combate urbano, podemos sugerir outras linhas de discussão que podem ser complementadas em análises vindouras. No momento, consideramos que ainda não há informações substanciais para progredir nessas avaliações, apesar de serem de grande relevância:
- Falta de perspectiva doutrinária sobre operações “offensive counter-air” (surpreendente, em face das lições recentes);
- Falta de capacidade de comando e controle avançado, ou seja, coordenação de múltiplas missões no TO (onde se ressalta o emprego das capacidades de aeronaves com AWACS, como o A-50 Beriev);
- Mentalidade de força aérea como “arma de suporte” à ofensiva terrestre, ou como denominaram Grau e Bartles, “pensamento centrado em ofensivas terrestres das forças armadas russas”[33];
- Apreciação e/ou cálculo sobre efeitos desejados de natureza sistêmica (defesa aeroespacial), ao invés de privilegiar apenas o dano físico;
- Falta de perspectiva em torno da negação de área (por parte dos planejadores de força aérea russos);
- Papel do reconhecimento aéreo, tanto antecipado como na avaliação dos danos de batalha (battle damage assessment), fator de análise que pode suscitar algumas explicações para as análises realizadas acima;
- A atuação dos drones (aeronaves remotamente pilotadas, ARP), como no caso do Bayraktar TB2 de origem turca (utilizado pela Ucrânia), que já havia atuado em Nagorno-Karabakh no ano de 2020, principalmente quanto à sua operação em ambiente contestado e os resultados obtidos; e/ou
- O impacto das armas ocidentais que podem vir a estar disponíveis para as forças armadas ucranianas, em especial os mísseis superfície-ar, drones e, menos provável, aeronaves operadas por pilotos ucranianos.
https://velhogeneral.com.br/2022/03/08/conflito-russia-x-ucrania-emprego-do-poder-aeroespacial/
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